Novo manual de diagnóstico causa 'guerra' na psiquiatria
O processo de revisão do mais influente manual de psiquiatria do mundo ganhou contornos de guerra nos últimos meses.
Abrindo a possibilidade de que pessoas consideradas saudáveis passem a ser classificadas como portadoras de transtornos mentais, a obra despertou a ira de psicólogos, que já recolheram 11 mil assinaturas em uma petição contra as mudanças.
Psicólogos brasileiros devem aderir ao movimento, que começa a ganhar apoio de psiquiatras proeminentes.
O DSM (Manual de Diagnósticos e Estatísticas) da Associação Americana de Psiquiatria é referência para tratamento e cobertura das doenças pelos planos de saúde.
Entre as principais preocupações está o relaxamento dos critérios para que pessoas se encaixem como portadores de problemas como depressão, esquizofrenia e ansiedade (veja a figura).
Isso abre a possibilidade para que mais gente seja medicada e exposta a efeitos colaterais. Antidepressivos, por exemplo, podem causar redução do desejo sexual e problemas de sono.
"Há um retrocesso. Eles estão aumentando a patologização de situações comuns na vida das pessoas, como o luto", afirma Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia.
A atual versão do manual exclui do diagnóstico de depressão quem está em luto por até dois meses, considerando que a tristeza é uma reação normal. A proposta é abandonar a exclusão.
"O luto é uma condição da vida, não uma doença. Não precisa ser 'medicalizado'", afirma Theodor Lowenkron, professor de psiquiatria da UFRJ e membro do departamento de diagnóstico e classificação da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Para ele, o avanço da neurociência e a pressão da indústria farmacêutica têm levado à priorização do tratamento com remédios em vez das terapias psicossociais.
Ele considera importante, porém, a inclusão no novo manual de alguns transtornos que não tinham uma categoria própria, como a compulsão alimentar. "Encontramos esses casos com frequência na prática clínica."
Os psiquiatras americanos responsáveis pelo novo manual afirmam que os novos diagnósticos não vão mudar a incidência das doenças que já existem.
Quanto aos novos transtornos incluídos no manual, dizem eles, muitos seriam só diagnósticos mais adequados para casos hoje enquadrados em outras categorias.
O psiquiatra Cláudio Banzato, professor da Unicamp, diz que há uma expectativa exagerada em relação ao DSM. "Tomá-lo como 'livro de receita' que pode ser empregado de forma ingênua e irrefletida é um erro grave."
Segundo ele, nesse embate, há bons argumentos dos dois lados. "Deve haver preocupação tanto com a medicalização excessiva e o tratamento desnecessário como com a falta de diagnósticos."
A versão final do novo manual deve estar pronta em maio do ano que vem.
Proposta é 'inconsequente', diz ex-editor
Há 15 anos, o psiquiatra americano Allen Frances coordenou a 4ª edição do DSM (manual de diagnóstico da Academia Americana de Psiquiatria) e ajudou a elaborar critérios que resultaram em uma "epidemia" de doenças mentais, como a do deficit de atenção e hiperatividade.
Em entrevista à Folha, Frances explica por que acha as propostas de mudança do DSM "inconsequentes".
Allen Frances - As pessoas encarregadas das mudanças estão preocupadas com o risco de deixar pacientes sem apoio. Mas a indústria tem um marketing agressivo para explorar as mudanças. Muitos são ingênuos ao desconsiderar como suas propostas podem ser deturpadas.
Os critérios do manual não podem ser mais objetivos?
Diagnósticos psiquiátricos são baseados em critérios subjetivos, e pequenas mudanças podem incorrer em enormes variações entre quem é diagnosticado e quem é considerado normal.
Não seria melhor abandonar o manual?
Não. O problema é que os transtornos moderados são propensos a sofrer abuso. O DSM-5 é inconsequente ao sugerir propostas que vão rotular pessoas como portadoras de transtornos que elas provavelmente não têm. Nenhum dos novos transtornos está cientificamente estabelecido. Alguns podem ter uma incidência de 5% ou 10%. Num país com o Brasil, 7 milhões seriam diagnosticados com "transtorno misto de ansiedade-depressão".
O que mudou no jeito de elaborar o manual?
As pessoas na força-tarefa do DSM-5 trabalham em ambientes fechados de pesquisa e não têm ideia de como suas sugestões são deturpadas na vida real. Os clínicos gerais são muito influenciáveis pelo marketing da indústria farmacêutica, e a maior parte das drogas psiquiátricas nos EUA são receitadas por clínicos, não por psiquiatras.
Fonte: reportagem de Cláudia Collucci e Rafael Garcia, publicada na Folha de São Paulo de 05/02/2012.
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