Socorro aos viciados em drogas é pra ontem
A relação do rock-'n'-roll com as drogas foi tema de diálogo entre o músico Fernando Chuí e o psiquiatra Hamer Palhares no Café Filosófico CPFL da última sexta-feira de outubro.
Palhares, formado pela Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto e doutor em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também é músico amador e autor de um blog onde publica ensaios sobre cultura, sociedade e literatura.
Metrópole conversou com Palhares sobre causas, consequências e superação da dependência química, mal que atinge, em grande escala, a população mundial.
Metrópole - Por que a droga é tão ligada ao mundo das celebridades e principalmente ao rock?
Hamer Palhares - A droga, como fenômeno humano, perpassa vários tipos de experiências, como prazer, curiosidade, relaxamento, alívio de dor, alívio de vazio existencial e também busca por experiências transcendentais. Essa curiosidade é típica do ser humano. Em relação às estrelas do rock, há um índice de intensidade na vida dessas pessoas. Nos anos 1960, elas tinham dinheiro, sucesso, fama e poder. A droga entrava como uma liga disso tudo. Era o ingrediente de um modo de vida intenso e muitas vezes não só de experimentação, mas também de um uso pesado. Muitas pessoas famosas daquela época desenvolveram dependência ou morreram de overdose.
E hoje o que mudou em relação ao consumo de drogas por celebridades?
Até os anos 1960 havia certa inocência, porque algumas drogas, como a maconha e o LSD, eram consideradas lícitas. Naquela época, não havia também uma grande descrição da dependência, da doença relacionada à droga, como um fenômeno de massa. Na virada dos 60 para 70, a sociedade passou a ver o comportamento de quem consumia droga como imoral e, consequentemente, a droga como um modelo imoral de vida. A droga embasava aquele estilo, como o dos hippies, por exemplo. Houve uma grande repressão que culminou com a guerra às drogas. Os Estados Unidos investiram milhões combatendo drogas, porém, sem sucesso. No entanto, a droga passou a ser vista como um fenômeno criminoso.
Em 1970, o narcotráfico internacional se aparelhou e deu impulso ao crescimento do consumo de outras drogas, como a cocaína e heroína. Em 1980, surgiu o crack nos guetos dos Estados Unidos, que virou uma epidemia mundial nos anos 1990 e 2000. Se nos anos 60 a droga tinha um papel de descobrimento, de ampliação da criatividade, na experiência subjetiva diferente da experiência racional cotidiana, atualmente o processo é outro. As drogas do momento não têm o potencial de aumentar a inspiração. Ninguém imagina um músico usar crack e sentar para escrever uma letra. A droga, hoje, é usada como uma experiência de se inebriar e aumentar as sensações de prazer. O ecstasy, por exemplo, desencadeia um processo de intensificação das sensações corporais e aceleração psíquica. Também causa ansiedade e excitação.
Dependentes e usuários que têm destaque na mídia estimulam, de alguma forma, consumo de drogas?
Há estudos que mostram que sim. A mídia, especialmente através da propaganda, e também o cinema, estimulam muito. Há uma modelagem comportamental, conforme as pessoas se identificam com quem elas julgam heróis. Um bom exemplo é o Keith Richards, dos Rolling Stones. Essas pessoas vão adotar algumas posturas semelhantes às dele, que é famoso também pelo consumo de drogas. Mas esse não é o maior estímulo ao consumo. As principais influências são o exemplo dos pais, a tolerância social, a falta na capacidade de contenção e de suporte da sociedade e índices relacionados com a própria personalidade, como curiosidade, transtornos mentais e impulsividade.
A tolerância social está ligada à explosão do consumo de drogas nas ruas das grandes cidades brasileiras?
Eu considero isso mais como descaso. São pessoas gravemente dependentes de uma droga problemática como o crack e ninguém quer colocar a colher nesta cumbuca. Por outro lado, no Brasil houve uma redução na tolerância ao uso de tabaco. Em 20 anos, a frequência do consumo caiu de 32% para 18%. A lei antifumo tem alto índice de aprovação, inclusive entre os fumantes.
Nesses casos, como o senhor acredita que o governo deva intervir?
Uma política que intensifique a intolerância não irá resolver em nada a vida dessas pessoas. Essa é uma questão complicada, pois é preciso lidar com o tratamento de quem não tem um suporte social, de quem é gravemente dependente e que perdeu a capacidade laboral e a habilidade social. A recuperação envolve outros campos, como o serviço social e políticas assistenciais. Creio que o governo tenha que investir em prevenção, pois isso não existe no Brasil.
Qual a sua opinião sobre a legalização da maconha?
Sou a favor da discriminalização do uso. A legalização significa que a maconha poderá ser comprada legalmente em qualquer lugar. Essa é uma questão que a sociedade tem que responder e não um especialista em dependência química. Existem pessoas que consomem sem problemas, mas também há outras que sofrem crises de pânico e transtornos psicóticos. A questão da legalização é que ela aumenta os problemas relacionados à droga. Por outro lado, provavelmente a legalização diminua algum índice de violência na consecução da droga e de alguns absurdos, como a pessoa ser presa e passar um mês na cadeia por ter sido pega com uma quantidade de maconha. A tendência da Organização Mundial de Saúde é de olhar o usuário não como criminoso e, sim, como um doente, uma pessoa que precisa de ajuda. A legalização cria uma ideia de que tudo será resolvido e que o traficante entrará para o mercado formal de trabalho, porque não terá mais espaço como vendedor de droga. Na verdade, ele irá trabalhar com outra coisa ilegal. É um debate polêmico. As pessoas têm muita opinião, mas não têm conceitos.
De que maneira é feita a prevenção ao uso de drogas?
Existem várias formas, que vão desde a redução da propaganda, aumento disponibilidade de serviços de tratamento, melhor educação de pais e professores até a identificação precoce de casos dentro das escolas, olhar com mais atenção os alunos faltantes, orientar professores a detectar problemas e disponibilizar tratamento. Hoje, o dependente que procura um serviço público, entra em uma fila de dois a três meses, tempo que ele não tem. Após dois, três meses, a pessoa pode ter sido presa, ou mudado de ideia ou ainda teve algum problema relacionado à droga. A prevenção depende de serviços disponíveis, acessíveis com maior rapidez e estrategicamente distribuídos.
Como o senhor vê o uso lícito de álcool e fumo?
A droga que causa mais dependência do ponto de vista epidemiológico é o tabaco. Só no Brasil, 18% da população é tabagista e outros 10% consomem álcool. Só porque há uma aceitação social maior, nem por isso o prejuízo no consumo delas será menor. Para se ter uma ideia, o álcool mata mais que todas as outras drogas e o tabaco mata mais que o álcool e todas as outras drogas.
Como se dá o tratamento da dependência?
Existem muitas ferramentas e cada paciente pode precisar de um conjunto específico delas. Há pessoas que decidem parar e param. Há outras que se dão bem com organizações como os Narcóticos Anônimos e que não precisam de outro tipo de tratamento. Há, ainda, pessoas que necessitam de internação por alterações mentais causadas pela droga. Para elas, existem medicamentos que funcionam de maneira bastante eficaz, principalmente para a cura da dependência de tabaco, heroína e álcool. Para outras dependências, como a de crack, cocaína, maconha e anfetaminas, ainda não existe medicação específica. O tratamento costuma ser longo, pode ter recaídas e envolve a família. É preciso usar quantas ferramentas forem necessárias. Não dá para ter uma receita de bolo que fale que o tratamentoé este e que funciona.
Fonte: texto de Eduardo Gregori, publicado na revista Metrópole campinas de 21/11/10.
Café Filosófico: especialista em dependência química, Hamer Palhares fala da relação das drogas com o rock e diz que prevenção depende de serviços disponíveis, acessíveis com maior rapidez e estrategicamente distribuídos.